Entre Espaços
O que há entre a Galeria Homero Massena e o Museu de Artes do Espírito Santo?
Os educadores que circulam entre dois espaços expositivos e lidam com duas propostas curatoriais de uma mesma exposição, devem responder o que há entre esses dois espaços, conceitualmente e fisicamente.
ENTRE ESPAÇOS
Bárbara Thomaz
A proposta da exposição Reviravolta, parceria da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Espírito Santo com a associação Videobrasil, funciona a partir de dois eixos expositivos interseccionais, atravessados conceitual e politicamente, que dizem respeito a uma mesma curadoria, a uma certa unidade de sentido. Isto é, ainda que estes trabalhos guardem suas particularidades, suas idiossincrasias em termos de metodologias e abordagens, são vozes que coletivamente, empenhando-se em produzir a diferença, formam um uníssono contra os intentos hegemônicos na aplanação de sentido sobre a vida.
Os trabalhos apresentados no MAES, Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo, ostentam uma verve crítica geopolítica realizada por artistas do Sul Global – sendo esta a posição política manifesta do acervo da Videobrasil – direcionadas às possibilidades da linguagem e de modos de vida distintos e contra hegemônicos a partir da periferia. Sabenças e ciências ancestrais, cosmologias outras, são invocados no sentido de reposicionar os sujeitos na produção de (re)conhecimento e memória coletiva, que é constantemente solapada e neutralizada pela lógica do capitalismo global.
Produção, inclusive, aqui nada resguarda de semelhante com esta ordem. Não se trata de extrair a riqueza da vida até as últimas consequências, até seu esgotamento total. Ao contrário: são artistas muito mais interessados na vida como procedimento de compostagem e, por isso mesmo, de reviravolta.
Desde Há Terra, de Ana Vaz, passando por About cameras, spirits and occupations, do coletivo indígena Alto Amazonas, até Tocaia, de Aline X e Gustavo Jardim, e os quatro vídeos presentes de Paulo Nazareth, Cine África, Cine Brasil, Ipê Amarelo” e L’arbre D’oublier, para citar apenas algumas das obras presentes, a ideia é fazer tensionar, com o vídeo, os discursos predominantes através de uma guinada epistemológica.
Os trabalhos apresentados na Galeria de Arte Homero Massena têm como fundamento a performance, desde registros performáticos que datam das primeiras edições da Videobrasil até a performance como meio que se hibridiza midiaticamente com o vídeo. Seus questionamentos e efeitos são igualmente radicais no sentido de produzirem uma interpelação e análise crítica do poder.
Coco Fusco (A Bare Life Study, 2005) e Marcello Mercado (Politik, 2001) rememoram e fazem aparecer o não-visto das alcovas da grande política. O incômodo e o arrepio conservador sobre estes trabalhos está naquilo que as políticas e o triunfalismo liberal não nos deixam ver: enquanto governos de direita suplantavam, via golpe de estado, as liberdades de seus próprios povos sob o selo da ordem e do progresso, pessoas eram bárbara e silenciosamente torturadas em seus porões e prisões.
Mercado mostra "lá, onde o sol não bate" em sua ambivalência de sentidos. Lá, em que a exceção é permanente, como na prisão de Guantánamo – caso da performance de Coco Fusco –, àqueles que perturbam os desígnios da lei. A nudez da vida dos outros onde não a vemos é matéria prima e contra-proposta a estes regimes necrófilos.
Em Futebol (2005), do coletivo 3 de Fevereiro, e Samba do Crioulo Doido (2014), de Luiz de Abreu, os artistas se utilizam de estratégias distintas em performance para irromper contra uma mesma ordem e manifestações racistas cotidianas. São trabalhos direcionados à inconfessa e naturalizada consciência colonial.
Já na década de 1980 – período cambaleante da ditadura militar brasileira e momento em que se iniciam as primeiras edições da Videobrasil –, a série de performances de Otávio Donasci invoca, nas fissuras do regime, criaturas videoantropomórficas que circulam no espaço urbano de São Paulo, sendo um verdadeiro prenúncio – a níveis físicos, prostéticos, pois que transformam o corpo do próprio artista –, da hibridização dessas linguagens artísticas.
Mais recentemente, em 2011, a performance de Paula Garcia, Estudo para um soterramento, se realiza em uma espécie de oficina mecânica impregnada de magnetismo no seu teto e paredes. O trabalho nos interroga sobre o que é consenso em termos de peso e leveza da matéria, tumultuando as paredes ao posicionar objetos metálicos de variadas dimensões em sua superfície.
Ambos os eixos expositivos visionam, portanto, que nos reviremos. Façamos destes trabalhos-comunidade veículos para um exercício de pensamento anticolonial que não mistifique e nem romantize – próprio de um culto exotista pretensamente benevolente – as propostas desses artistas. A Reviravolta é uma oportunidade de reexaminação crítica da linguagem, de abertura a novas perspectivas que escapem ao antropoceno; são rituais de reversão – o vídeo, por excelência, como imagem movimento em que se rebobina – e de cura dos traumas coloniais empenhados pela modernidade em todo seu vigor; a Reviravolta nos faz pensar relações distintas com a terra, que não aquela em que apenas se retira sua vida pela marcha progressista, mas que pode ainda, quem sabe, se alinhavar com ela.
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